Nesta edição da Feira Medieval de Silves será retratado um período da história da cidade que ocorre na primeira metade do século XII. É uma época politicamente conturbada, em que o poder deambula, com rapidez, entre vários actores políticos e militares. Neste cenário político temos, no comado, os intolerantes Almorávidas, tribo aguerrida do Norte de África; pequenos poderes instituídos localmente que pretendem autonomizar-se; e os também norte africanos Almóadas, decididos a reunificar o poder a partir do seu centro politico sediado em Marraquexe. É neste ambiente pesado e hostil, em que prepondera o jogo politico, que as alianças e os pactos acontecem, ao sabor das conveniências dos que, muitas vezes, escondem a sua ambição sob a capa da religião.Figura central e incontornável da nossa história local é Ibn Qasî, que nasce em Silves em data indeterminada, no seio de uma família abastada de raízes cristãs não muito longínquas. A morte súbita dos pais quando ainda jovem fá-lo trocar a sua vida de prazeres por uma postura séria e responsável. Reafirma a sua devoção ao islamismo, vende os bens que herda da família, doa metade do dinheiro aos pobres e com o restante constrói um convento destinado a monges guerreiros (rîbat), não longe de Silves, que virá a ser sede da doutrina que funda com suporte espiritual no sufismo: o muridismo. Ibn Qasî percorre o Gharb a difundir a sua doutrina e capta a atenção de populações que se revêm no seu pensamento formando-se núcleos locais de apoio também em Mértola e Niebla. Diz-se que assume o título de Madhí (Messias) e que a ele são atribuídos feitos divinos como a viagem a Meca numa só noite. A doutrina múrida contraria, no entanto, alguns dos princípios do islamismo e a censura muçulmana persegue e condena os múridas. Ibn Qasî decide extravasar a contestação doutrinária e inicia uma guerra política que lhe permite aceder ao governo das mais importantes cidades do Gharb de então: Mértola e Silves. Estes feitos dependeram, contudo, de estratégias politicas que empreende e que o levam a alternar as alianças, ora com almóadas, ora de novo com almorávidas. É, no entanto, a sua aliança com D. Afonso Henriques, senhor de Portugal, que afronta os dominantes almóadas mas sobretudo desgosta as classes possidentes muçulmanas que em Silves até aí o haviam apoiado. A conspiração e a antevisão da sua própria morte pululam o seu espírito consciente de que estaria a desafiar o próprio destino. Ibn Qasî é assassinado por um grupo de conspiradores, liderado por Ibn Al-Mundhîr, um dos seus apoiantes de longa data, senhor de Silves que com ele se havia incompatibilizado. O mestre murída é decapitado, espetada a sua cabeça na lança oferecida por D. Afonso Henriques e passeada pelas ruas da cidade com o grito: “Eis aqui o Madhí dos cristãos”.
1º Dia | 12 agosto - Ibn Qasí: nascimento, tragédia... E uma nova espiritualidade
Ibn Qasí nasce em Silves em data não determinada ficando órfão quando ainda jovem. De modo a atenuar tamanha dor redobra a sua devoção ao Islamismo, vende os bens que compunham a sua herança, distribui metade pelo povo e com a outra parte manda construir um ribat na alcaria Jîlla, não muito longe da cidade. Transfere-se para o ribat e é seguido por um grupo de jovens que apreciam as suas ideias e o brilhantismo das suas capacidades oratórias. Ali desenvolve uma nova doutrina, o Muridismo, e congrega número elevado de seguidores.
2º Dia | 13 agosto - Ibn Qasí e a pregação do muridismo: nasce o Mestre
Ibn Qasí, acompanhado por alguns dos seus seguidores, entre eles Ibn- Al-Mundhîr, percorre o Gharb a difundir a sua nova doutrina, o Muridismo, uma doutrina sufí baseada no misticismo e na contemplação. As multidões formam-se para ouvir as suas convincentes palavras, que ensinam aos crentes a desenvolver uma relação íntima, direta e contínua com Deus, utilizando práticas espirituais transmitidas pelo profeta Maomé. As populações enchem-se de entusiasmo religioso. Formam-se núcleos importantes em Mértola, Silves e Niebla.
3º Dia | 14 agosto - Ibn Qasí, o Mahdi...
Ibn Qasí toma o título de Mahdi (=a Messias na religião hebraica) e os seus partidários idolatram-no e sustentam que o mestre era capaz de autênticos milagres, como numa só noite fazer a viagem a Meca, uma das obrigações de qualquer muçulmano; que era também capaz de transmitir o seu pensamento com a força da mente; que acedia e gastava dinheiro do tesouro de Allah. Segundo tradições antigas o Mahdi havia de chamar-se como o Profeta e, a partir dali, passa a intitular-se Mahomed Ibn Qasí Abdalá.
4º Dia | 15 agosto - Ibn Qasí: determinação e insurreição
A doutrina Múrida contraria alguns dos princípios básicos do Islamismo. A censura islâmica condena estas novas tendências e as autoridades perseguem os múridas. Ibn Qasí desloca-se a Almeria a fim de visitar Ibn Alarife, outro mestre sufi que na região difunde doutrina semelhante para, conjuntamente, concertarem uma estratégia de defesa. Este já tinha sido chamado a Marraquesh para justificar a sua doutrina. Ibn Alarife segue para o Norte de África a fim de prestar contas aos dominantes Almorávidas mas, Ibn Qasí, insurreto, regressa ao Gharb, desafiando o poder instituído.
5º Dia | 16 agosto - Ibn Qasí: ascensão e queda
Ibn Qasí ganha cada vez mais força interior e, o apoio das massas que o seguem, reforçam a convicção de que está no caminho certo para chegar a Allah. Convence-se, contudo, da indissociabilidade dos poderes político e religioso, recolhe-se de novo no seu Ribat e inicia uma fase que extravasa a contestação doutrinária. Põe em causa a própria dinastia reinante e delineia uma estratégia de conquista territorial. Ordena a um dos seus seguidores que ataque o Castelo de Monteagudo. A fortificação é, no entanto, cercada pelos poderosos e reinantes Almorávidas que neutralizam a acção e, o discípulo de Ibn Qasí é morto provocando grande consternação e revolta no seio dos Muridas.
6º Dia | 17 agosto - Ibn Qasí: conquista e poder
Ibn Qasí reanima o grupo transmitindo o célebre pensamento: “Em verdade há a falsa aurora e a verdadeira. Mas só depois da falsa aurora é que vem a verdadeira e o autêntico dia”. Refugia-se perto de Mértola e desenvolve, a partir dali, a verdadeira revolta contra os Almorávidas. Conta agora com o apoio do famoso general Al-Kabila. Ibn Qasí atribui-lhe vários títulos: “Espada da Revolta” e “Sustentáculo do Império e da Vitória”. Ordena-lhe que tome Mértola o que é conseguido com recurso a ardiloso estratagema. Ibn Qasí é agora senhor de Mértola e do seu vasto território.
7º Dia | 18 agosto - Ibn Qasí: triunfo e glória plena
Ibn Qasí entra triunfalmente no Castelo de Mértola. Continua a distribuir dinheiro junto das populações justificando-se que tinha acesso ao tesouro de Alá, o que lhe permite redobrar os seus partidários. Um camponês põe em causa a proveniência do dinheiro sendo levado a Ibn Qasí que o acusa de ingratidão e o condena à morte. Entretanto, colhe adeptos noutras cidades e, em Silves, Ibn Al-Mundhîr, seu seguidor de longa data, apoia-o e, sendo por si incentivado, revolta-se contra os Almorávidas e assume localmente o poder dirigindo-se a Mértola ao encontro de Ibn Qasí seguido por numeroso exército. Ali chegado reconhece Ibn Qasí como Mahdí.
8º Dia | 19 agosto - Ibn Qasí: alianças e desalianças
Ibn Al-Mundhîr é reconhecido por Ibn Qasí como senhor de Silves a quem atribui o título de “Vitória de Alá” e incumbe de iniciar uma série de conquistas que se alargam a Huelva e Niebla, tendo apenas estacado em Sevilha onde se confronta com tropas Almorávidas vindas de Córdova. Tenta ainda conquistar Sevilha e Córdova mas, várias vicissitudes impedem-no, pelo que decide pedir apoio aos Almóadas do Norte de África. Tal atitude desgosta os chefes do território do Gharb que em si reconhecem apenas ambição pondo em causa o seu título de Mahdí. Ibn Qasí, sentindo-se fragilizado, desloca-se pessoalmente ao Norte de África procurando ali apoio junto dos Almóadas.
9º Dia | 20 agosto - Ibn Qasí: finalmente senhor de Silves
Ibn Qasí investe contra Silves que se mantinha sob o governo de Ibn Al-Mundhîr que se havia revoltado contra o seu antigo mestre. Ibn Qasí toma o castelo de assalto e Ibn Al-Mundhîr evade-se para Córdova. Ibn Qasí é agora senhor de Silves. Os Almóadas pedem a presença do mestre múrida no Norte de África mas este recusa-se e permanece em Silves medindo forças. Entretanto, numa atitude de desafio do destino, envia uma proposta de aliança a Afonso Henriques, senhor de Portugal, que já havia tomado Santarém, Lisboa, Sintra, Palmela e Alcácer do Sal. Este envia comitiva a Silves trazendo como oferta uma armadura, uma lança e um cavalo armado à goda, símbolos que selam a aliança entre os dois líderes.
10º Dia | 21 agosto - Ibn Qasí: definitivamente o encontro com Allah
Surgem os primeiros rumores de que o povo estava desgostado com a aliança feita com cristãos. Ibn Qasí começa a sentir o peso de tantas contradições e por vezes surge-lhe horrível e sangrenta a visão da morte. Astutamente Al-Mundhîr aproveita o descontentamento do povo e trama uma conspiração contra o senhor de Silves. Desenha um estratagema que permite a sua entrada no castelo e ali é assassinado Ibn Qasí, a quem cortam a cabeça, espetam-na numa lança e passeiam-na pelas ruas da cidade com o grito: “Eis aqui o Mahdi dos cristãos”.
Retesa o sonho no arco da nobreza e lança setas mortais sobre o inimigo.
Com tuas mãos protege Silves, chão de pomos, cidade primorosa.
E assim será até um fatal dia: tão numerosos serão os inimigos
Que todos os cumes da montanha hão-de gritar: cristão!
(Ibn Qasí transcrito por Ibn Al-Khatîb, in Adalberto Alves, 2001)